

Em valores brutos, Unimed Cuiabá pagou mais de R$3 milhões a delegados de Polícia Federal
Documentos internos da cooperativa revelaram um esquema milionário envolvendo pagamentos realizados pela Unimed Cuiabá a delegados de Polícia Federal através de uma empresa de fachada, criada após o início dos 'serviços' para operar o recebimento do dinheiro. Para dar lisura ao objeto, foram feitos contratos de consultoria, mas série documental mostra que delegados atuaram em investigações que foram usadas em processos criminais, de forma distinta aos objetos contratuais, e que receberam promessas (e garantias documentais) de êxito em ações do MPF e da PF.
GERAL
Redação
7/4/2025


A reportagem que você começa a ler agora destrincha, com base em documentos e contratos, como dois delegados da Polícia Federal — Carlos Eduardo Fistarol, que foi exonerado em 16/12/2024, e Rodrigo Piovesano Bartolamei — foram contratados pela Unimed Cuiabá através da empresa Trinity Consultoria Ltda., que só foi criada após o início da prestação dos serviços.
Entre 2023 e 2025, a Trinity recebeu mais de R$ 3 milhões da cooperativa, além de contratos prevendo lucros adicionais mediante “êxito” em processos judiciais — inclusive em ações movidas pelo Ministério Público Federal, com o próprio auxílio da Polícia Federal.
Os delegados alegam que estavam em afastamento temporário das funções. Contudo, nenhum afastamento temporário pode autorizar que se faça contratos com objetos distintos do que de fato está sendo realizado, que se ganhe êxito em ações propostas por organizações que podem sofrer a sua influência, nem sequer pode usar do prestígio do cargo para auferir ganhos financeiros.
Pagos com recursos privados, os delegados passaram a agir em alinhamento com os interesses da atual diretoria, promovendo investigações (com finalidade processual), coletando e produzindo documentos e orientando estratégias para incriminar adversários políticos da gestão vigente. Todo o material por eles produzido foi encaminhado ao MPF, sendo usado para deflagrar operações como a Bilanz, instaurar processos criminais e embasar um acordo de leniência favorável à gestão da Unimed.
E, quando se fala em acordo de leniência, cumpre destacar que não havia nenhuma investigação do Ministério Público Federal ou da Polícia Federal sendo conduzida em desfavor da Unimed Cuiabá. As denúncias foram cavadas pela própria atual gestão que, na sequência, veio a precisar de um acordo de leniência para preservar o CNPJ de punições, enquanto se atingia apenas os ex-gestores que eram seus desafetos políticos.
Os atuais diretores da cooperativa foram os contratantes dos delegados e participaram ativamente das tratativas.
Procuradores do Ministério Público Federal utilizaram documentos produzidos pelos delegados contratados (nos autos foi encontrado um documento com o email da Trinity pintado de branco, de modo a ficar oculto no arquivo).
As apurações a seguir demonstram ainda que a Chief Compliance Officer, Carla Locatto, tinha pleno conhecimento dos serviços empregados pelos delegados e, segundo afirmou em Assembleia de cooperados, fazia reportes diretos ao MPF.
Os fatos a seguir narrados (em conjunto aos documentos comprobatórios anexados) trazem à baila uma articulação inédita, que expõe o uso indevido de agentes públicos e recursos privados para manipular investigações, criminalizar opositores e garantir interesses pessoais à margem da lei.
Faça-se Trinity
Ainda era março, primeiro mês da gestão Bouret – que havia começado em 06/03/2023 – quando Carlos Eduardo Fistarol (então delegado de Polícia Federal), Carlos Eduardo de Almeida Bouret (diretor-presidente da Unimed Cuiabá), Junior Cesar Aparecido Ratto (diretor administrativo financeiro) e Paulo Ricardo Brustolin da Silva (então consultor-executivo da cooperativa) se reuniram e acordaram que Fistarol começaria a atuar como investigador privado dos novos gestores.
Esta reunião foi mencionada em um contrato posterior, que formalizou direitos a remunerações por êxitos – inclusive vinculados a ações do MPF que são conduzidas com o apoio da Polícia Federal.
Em seu primeiro contrato, no entanto, ficou acordado recebimentos iniciais na ordem de R$87 mil ao mês. E, para fins de pagamentos, este contrato (que foi assinado em 12 de abril) considerou que a empresa Trinity Consultoria Ltda havia começado os trabalhos em 28/03/2023.
Ocorre que, em 28 de março de 2023, Trinity Consultoria Ltda sequer existia. A empresa só recebeu o seu Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica em 4 de abril de 2023, exatos 7 dias após esta mesma empresa ter começado a trabalhar para a Unimed Cuiabá.
A empresa, que também não possuía funcionários, começou com a seguinte composição societária: Carlos Eduardo Fistarol – então delegado de Polícia Federal – era o administrador e detinha de 98% das quotas. A sua esposa, Denise Caroline Mutti Perroni Fistarol – servidora pública do TJSC –, detinha os outros 2%.
A sede, desde a fundação até hoje, trata-se de um quarto dentro de um apartamento residencial.
Abaixo, você confere – e pode até mesmo fazer download – a imagem do prédio residencial onde fica o apartamento cujo quarto é a sede da empresa, o primeiro contrato da Trinity e o cartão CNPJ com a data de criação da empresa.


A influência de Bartolamei
Antes de ser lotado em Santa Catarina, Carlos Eduardo Fistarol esteve lotado por anos em Mato Grosso. Onde – por óbvio – construiu rede de relacionamentos.
Ainda assim, em janeiro de 2024, Rodrigo Piovesano Bartolamei entrou no quadro social da Trinity. Fistarol dividiu com ele, de forma igualitária, as suas quotas. Cada um, passou a figurar com 49% e Denise, esposa de Fistarol, permaneceu com seus 2%.
Não há dúvidas de que qualquer delegado exerce muito poder e influência, com o peso de seu distintivo e função. Contudo, a situação é majorada quando se trata de Bartolamei, porque ele já ocupou alguns dos mais importantes cargos da Polícia Federal.
Bartolamei foi Chefe da Superintendência Regional da Polícia Federal em São Paulo, Chefe da Interpol no Brasil, atuou no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, foi Chefe de Assuntos Internos na Superintendência da PF no Rio de Janeiro, foi Chefe da Divisão Antiterrorismo da Diretoria de Inteligência Policial e, também, foi o Coordenador de Segurança dos Jogos Olímpicos no Brasil.
Esta, no entanto, não é a primeira vez que Rodrigo Bartolamei aparece no noticiário por razões negativas. Quando o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro foi preso, Bartolamei chegou a ser indiciado por supostamente interferir nas investigações de modo a ajudar o ministro.
O delegado Bruno Calandrini, que teve a coragem de indiciar Rodrigo Bartolamei, acabou sendo temporariamente afastado. O caso, sem dúvidas, mostra o poder e a influência que Rodrigo conquistou na Polícia Federal.
No mesmo período em que houve a entrada de Bartolamei no contrato social da Trinity, os dirigentes da Unimed Cuiabá resolveram fazer uma nova contratação com a ‘empresa’. O novo contrato elevou o valor pago mensalmente: o que antes eram R$87 mil ao mês, passou a ser R$135 mil ao mês.
O novo documento trouxe novos objetos contratuais, mas manteve o padrão de não possuir ‘entregáveis’ específicos.
Abaixo, você confere – e pode até fazer download – o Contrato Social da Trinity Consultoria Ltda (com todas as suas alterações ao longo do tempo) e o segundo contrato firmado entre Trinity e Unimed Cuiabá.
Contrato simulado
Por motivos óbvios – de esconder ilegalidades – em nenhum dos contratos aparece qualquer objeto referente a ‘investigações’ para uso em processos criminais.
Nos objetos contratuais, buscou-se enunciar que a empresa faria consultorias. O último contrato, a exemplo, estabelece três tipos consultivos: (1) compliance; (2) integridade; (3) segurança.
Segundo consta no próprio Acordo de Leniência feito entre a Unimed Cuiabá e o Ministério Público Federal, houve a contratação de uma firma especializada em compliance para que fosse feita a implementação de um novo programa. Em resumo: o contrato tenta sugerir que a companhia especializada em compliance precisaria do apoio, suporte e opinião consultiva da recém-criada – e nunca antes contratada para esta modalidade de serviço – Trinity.
Também cumpre lembrar que a Unimed enviou Ministério Público, em documentos prévios ao acordo de leniência, a configuração completa de seu programa de compliance e quem fazia parte dele. Carlos Fistarol e Rodrigo Bartolamei não foram mencionados como membros de qualquer comitê de compliance da Unimed Cuiabá.
No caso da consultoria em segurança, é ainda mais claro o intuito narrativo contratual. Chega-se a falar em ‘orientação e suporte nos processos de contratação’ de empresas de segurança. Em outras palavras: recebem (mais que a empresa que efetivamente faz a segurança armada, diga-se) para ensinar aos gestores como devem fazer a contratação de uma boa empresa de segurança.
Não bastassem as estranhezas, existem as confissões. Recebemos de funcionários uma resposta de ofício endereçada ao Conselho Fiscal da Unimed Cuiabá, onde de forma explícita os diretores Erleno Pereira de Aquino e Junior Cesar Aparecido Ratto sustentam que os valores pagos à Trinity são razoáveis, uma vez que a empresa foi contratada com “vários objetivos, dentre eles as investigações internas”.
Ainda segundo os diretores, os trabalhos da Trinity constituem a “base do sucesso” na obtenção do Acordo de Leniência com o MPF, no entendimento da ANS pela responsabilização dos antigos dirigentes e na concretização da operação Bilanz da Polícia Federal.
Abaixo, você confere a resposta ao Ofício do Conselho Fiscal feita pelos diretores da Unimed Cuiabá.
Delegado se envolveu até em balanço
O Instituto Brasil Cooperado tem feito algo que afronta a gestão da Unimed Cuiabá: fazemos publicações explicativas sobre o que está presente no próprio balanço da cooperativa.
As explicações incomodam porque elas desmontam a tese (que nunca esteve presente nos documentos de reapresentação do próprio balanço) de que houve um rombo financeiro na Unimed Cuiabá.
Temos mostrado, de forma clara e técnica, que – na verdade – durante o refazimento do balanço, optou-se por reconhecer contas sem auditoria médica interna ou em reversões de glosas. Por acaso, estas contas que ganharam estranho reconhecimento são, principalmente, do hospital que tem o atual presidente como ex-sócio. Além disso, o adicionar de novas contas forçou o aumento de provisões técnicas e optou-se também por transferir competências de receitas.
O mais curioso, contudo, é que – no depoimento ao MPF da ex-contadora da Unimed Cuiabá Maria Gladis – ela revelou que enviou relatórios a Carlos, porque ele era de uma empresa cujo nome ela não se lembrava bem, mas que ‘era algo como Trinix’ e que essa empresa estava, junto da auditoria independente, realizando os levantamentos para o novo balanço.
Quando um delegado federal, contratado de forma irregular, participa ativamente da reescrita dos números de uma cooperativa — números esses usados depois como base de denúncia criminal —, o que se vê é a mistura perigosa entre poder público e interesse privado, com a possibilidade de fabricação de provas.
Êxito combinado
No dia 30 de outubro de 2024, a Polícia Federal deflagrou a Operação Bilanz, cumprindo mandados de busca e prisão contra antigos dirigentes da Unimed Cuiabá. A ação tinha como pano de fundo inquéritos nos quais a Polícia Federal nunca havia diligenciado institucionalmente. Os inquéritos estavam sendo alimentados por documentos produzidos pelos delegados contratados pela própria cooperativa.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região considerou ilegal a motivação das prisões, poucas horas após ocorrerem.
Apenas uma semana depois de a operação acontecer, em 6 de novembro de 2024, Unimed Cuiabá e Trinity Consultoria Ltda. assinaram um novo contrato. Por meio dele, pactuou-se que os delegados receberiam comissionamentos (iniciados em 9%) por qualquer bem ou patrimônio dos antigos dirigentes que fossem revertidos para a Unimed Cuiabá por meio de processos cíveis ou criminais.
Ou seja, os delegados têm em vigência um acordo que os dá direito a receber honorários de êxito em ações movidas pelo Ministério Público Federal com o apoio da Polícia Federal.
Cumpre destacar que, segundo o item 1.1. do novo contrato, o êxito já estava verbalmente negociado e combinado desde reunião que antecedeu o início dos trabalhos (em março de 2023). O documento também assume que, apesar de nunca ter estado em objeto contratual até aquele momento, os delegados desenvolviam trabalhos de investigação privada e que alimentaram os processos. Na formulação contratual, usam até mesmo de uma nota do Ministério Público Federal que diz que 'a colaboração da Unimed foi crucial', e, então, o contrato atribui esta 'colaboração' ao trabalho da Trinity.
O contrato também menciona que os percentuais foram discutidos em reunião ocorrida em 30 de outubro de 2024, o mesmo dia em que aconteceu a operação da Polícia Federal.
Abaixo, você confere a íntegra do contrato de êxito firmado em 06 de novembro.
Carla Locatto e o triplo reporte
Durante uma Assembleia de cooperados ocorrida em 8 de fevereiro deste ano, a Chief Compliance Officer da Unimed Cuiabá, Carla Locatto, declarou publicamente que aceitou o trabalho na cooperativa com a condição de realizar um “triplo reporte”. Segundo ela, é sua função se reportar à Diretoria Executiva, ao Conselho de Administração e, “principalmente, ao Ministério Público Federal”.
Carla Locatto, que possui relacionamento profissional com Bartolamei (e interagem, inclusive, na rede social LinkedIn, onde sua atuação como delegado de Polícia Federal é divulgada), ao terminar a sua fala na Assembleia voltou para a plateia. Lá, se sentou ao lado de Rodrigo Bartolamei para conversarem.
Abaixo, você confere fotos de Locatto e Bartolamei juntos na Assembleia Geral Extraordinária da Unimed Cuiabá e a ata completa da AGE.




Pós-operação
Apenas em 16 de dezembro de 2024, Carlos Eduardo Fistarol deixou de ser delegado de Polícia Federal. Foi exonerado a próprio pedido, conforme consta em Diário Oficial. Segundo ele, o pedido de exoneração não tem relação com as suspeitas que estavam sendo levantadas sobre a sua atuação no caso Unimed. Para o Intercept Brasil, ele disse que "não precisava do salário da polícia" e que "era muito mais um hobby". Alega ainda que, hoje, está trabalhando com venda de souvenirs.
O ramo das souvenirs deve ser lucrativo, já que este ano ele comprou uma Porsche Macan S zero kilometro, avaliada em R$700 mil.
A maioria da diretoria da Unimed optou pelo encerramento do contrato de pagamento mensal em 31/03/2025, com a contrariedade dos diretores Victor Sano e Junior Ratto – que gostariam de manter a contratação.
Como a decisão se deu em prazo inferior a 30 dias do fim do contrato, há – por cláusula contratual – a renovação automática, que gerou direito a aviso prévio de 90 dias.
Os fatos foram denunciados pelo Instituto Brasil Cooperado a todos os órgãos cabíveis e já existem encaminhamentos.
Em 04 de julho de 2025, a imprensa nacional começou a olhar com atenção para o caso.
Abaixo, você confere a ata que decidiu pelo encerramento dos contratos mensais e o Diário Oficial que publicou a exoneração de Fistarol.